2008/12/23

Inviolabilidade


Após embates no mundo jurídico, inviolabilidade de escritórios vira lei

Em um ano em que as operações da Polícia Federal foram alvo de críticas e questionamentos, um projeto proposto para coibir ações em escritórios de advogados garantiu à classe o respeito, por lei, às prerrogativas da profissão. A inviolabilidade dos escritórios foi regulamentada no início de agosto de 2008 após intensos debates que colocaram em campos opostos a advocacia e a magistratura.
Com o objetivo de traçar um panorama dos principais debates e decisões do Judiciário no ano, a série Retrospectiva Jurídica 2008 apresenta ao leitor uma reflexão sobre a origem e desdobramentos de cada caso.

Conforme previsto, o projeto, sancionado pelo presidente da República em exercício, José Alencar, teve trechos vetados. Atendendo à recomendação feita pelo Ministério da Justiça, os parágrafos 5º, 8º e 9º foram retirados da nova norma.

Na prática, para evitar abusos de autoridades, a lei dispõe que mesmo com mandado de busca e apreensão, o escritório do advogado não pode ser objeto de ação policial, a não ser que o investigado em questão seja o próprio advogado. Leia aqui a redação original do projeto que teve os parágrafos 5º, 8º e 9º vetados.

Mas se no dia 7 de agosto — mesma data em que o banqueiro Daniel Dantas foi ouvido pela primeira vez na Justiça Federal de São Paulo— a inviolabilidade do local de trabalho dos profissionais da advocacia estava transformada em lei, o caminho para que o direito de defesa fosse assegurado pelo Legislativo colocou Judiciário e os operadores do direito em rota de colisão.

Os quase 30 dias entre a aprovação do projeto pelo Senado e a sanção presidencial foram marcados por ataques, pedidos de veto, cartas e notas técnicas ao presidente, reuniões e ofícios ao Ministério da Justiça e troca de farpas na imprensa entre juízes, membros do Ministério Público e advogados.

Imune e impune

Impunidade. Essa era a palavra de ordem que grande parte das entidades da magistratura, do Ministério Público e oponentes do projeto utilizavam como argumento para impedir que a “blindagem” dos escritórios se transformasse em lei. Assim, o local de trabalho dos advogados inviolável permitiria, como um verdadeiro “esconderijo”, que tais profissionais ocultassem provas e instrumentos utilizados em crimes.

Com a lei, não poderiam ser decretadas a busca e a apreensão em escritório de advogados mesmo com indícios veementes de que o local estaria sendo utilizado para ocultar a arma de um homicídio, por exemplo —a exceção era se a suspeita recaísse sobre o próprio advogado.

O presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), Fernando Mattos, chegou a afirmar que o projeto estava na contramão da Constituição. Para ele, as garantias concedidas pela Carta já são suficientes ao exercício de atividade essencial —a imunidade absoluta do advogado não teria espaço diante da legislação nacional. “Se nem a residência do indivíduo é coberta por uma inviolabilidade absoluta, como a lei pode estabelecer essa garantia para o escritório de advocacia?”, indagava Mattos.

Nenhum outro agente público ou privado detentor de informações sigilosas teria tamanha imunidade garantida na ordem constitucional e legal vigentes.

No dia 24 de julho, a associação encaminhou uma nota técnica, assinada também por outras oito entidades de juízes e procuradores, pedindo ao presidente da República que vetasse o Projeto de Lei 36/06.

Juízes e procuradores defendiam que, caso o projeto fosse transformado em lei, a persecução penal que eventualmente envolvesse advogados estaria inviabilizada e um grande número de investigações se tornaria improdutivo.

“Excrescência normativa”. Foi essa a definição dada pelo juiz Fausto De Sanctis, responsável pelo inquérito da operação Satiagraha da Polícia Federal, ao projeto.

Estado de Direito

Um dos mais famosos advogados do Brasil, Ricardo Tosto, foi preso no dia 24 de abril por suspeita de envolvimento em tráfico de influência e desvio de verbas do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), investigado pela operação Santa Tereza. O advogado foi algemado e seu escritório, Leite, Tosto e Barros, repudiou no mesmo dia o “espalhafato irresponsável” da PF.

Meses depois, em julho, era deflagrada a operação Satiagraha, que colocou em xeque a atuação, os métodos e a “espetacularização” das ações da PF, termo usado pelo ministro Gilmar Mendes, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal). A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos Grampos divulga, com base em números fornecidos por operadoras de telefonia, que cerca de 400 mil linhas telefônicas no Brasil foram alvo de escuta por ordem judicial.

É em meio à discussão sobre a instalação de um “estado policialesco” no país, onde os fins justificariam os meios, que o projeto de lei da inviolabilidade dos escritórios foi aprovado. Com o risco de que a proposta fosse vetada pelo presidente Lula, advogados negaram a criação de um local acima da lei e saíram em defesa do Estado Democrático de Direito.

A lei passaria a proteger não apenas a advocacia, mas sim a sociedade civil e o direito à ampla defesa presente na Constituição Federal. A sanção interessaria não apenas à classe, mas a todos os cidadãos que teriam garantidos direitos fundamentais.

“A advocacia não compactua com o crime e acha que o advogado que comete um ato criminoso tem que ser amplamente investigado e punido. A busca e apreensão ao escritório do advogado considerado criminoso estão expressamente previstas no texto do projeto de lei” afirmou na época o presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Cezar Britto.

Segundo o presidente da OAB, o órgão acusador não pode dispor de meios para conhecer a estratégia da defesa, como vinha acontecendo a partir da instalação de grampos ilegais nos aparelhos de telefone e em escritórios dos advogados. A seccional paulista da Ordem enviou, no dia 22 de julho, um ofício ao presidente Lula pedindo a sanção do polêmico projeto.

Luiz Flávio D’Urso, presidente da OAB-SP, afirmou que magistrados estariam patrocinando uma campanha difamatória, denegrindo a advocacia e passando a falsa idéia de que a impunidade estaria assegurada com a nova lei. “O projeto somente clarifica o que já está estabelecido no Estatuto da Advocacia”, afirmou D´Urso.

Criminalização

Mesmo que os advogados tenham reafirmado a garantia das prerrogativas da profissão com a lei da inviolabilidade, ainda é cedo para dizer se a violação de tais direitos é coisa do passado.

Há quem defenda que a violação das prerrogativas deva ser criminalizada. Esse é o objetivo do Projeto de Lei 4.915/05, já aprovado pela Câmara e que deve ser votado pelo Senado em 2009. O projeto ainda depende do relatório final do senador Demóstenes Torres (PFL/GO), da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado.

A proposta prevê detenção de seis meses a dois anos para quem violar os direitos ou prerrogativas do advogado, impedindo ou limitando a atuação do profissional. Pelo projeto, a pena deve ser aumentada em um sexto até a metade se for prejudicado o interesse patrocinado pelo advogado. Se aprovado pelo Congresso, o projeto deverá alterar a Lei Federal 8.906/94, que criou o Estatuto da Advocacia e da OAB.

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