Lula adotou o negacionismo para reescrever a própria história
Por José Casado
Atualizado em 26 jan 2024, 11h25
- Publicado em 26 jan 2024, 06h00
Há quase meio século, Lula
reconta a própria história, com voz rouca e tom sentimental. Nos palanques,
lembra a superação da miséria rural do Nordeste e a ascensão à classe média
urbano-industrial do Sudeste, em caso exemplar da mobilidade social no Brasil.
Essa narrativa épica foi emoldurada no triunfo do improvável, em 2003, na cena
simbólica do metalúrgico emancipado no sindicalismo subindo a rampa do Palácio
do Planalto para receber a faixa presidencial.
Agora, ele começou a lapidar um
epílogo para a biografia na política. São poucos os políticos vivos com
capacidade similar de moldar e esculpir a própria imagem na autoindulgência.
Menos ainda são os que podem difundi-la para plateias adestradas no culto à
personalidade. Com a argúcia de humorista e o polimento de escritor, Millôr
Fernandes (1923-2012) o retratou em sete palavras: “O Lula é viciado em si
mesmo.”
Ele está começando o décimo ano na
presidência, no quinto governo do Partido dos Trabalhadores. Se quiser, poderá
disputar o quarto mandato em 2026, quando completa 81 anos de idade. Seria a
sua última chance nas urnas antes de virar nonagenário. Como o tempo é uma vaga
e ilusória convenção humana, Lula se mostra impaciente em reescrever um pedaço
da sua história recente, marcada por episódios de corrupção no governo e no Congresso.
Aparentemente, ele fez uma opção preferencial pelo papel de vítima de poderes
obscuros.
O recurso às fantasmagorias é um
clássico na política. Permeou a carta datada de 23 de agosto de 1954 atribuída
a Getúlio Vargas: “Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo
coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim…”. Vargas escolheu seguir
“o destino que me é imposto” e saiu da vida para atravessar a História.
No agosto de sete anos depois, o
Sobrenatural da Silva reapareceu em carta de Jânio Quadros: “Forças terríveis
levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da
colaboração…”. Vangloriou-se: “A mim,
não falta a coragem da renúncia”. Foi-se e deixou o país num abismo político.
Lula apegou-se à bula das forças
ocultas. Usou-a em entrevistas no primeiro semestre de 2023 e repetiu semana
passada num comício em Ipojuca, Pernambuco. “A história ainda vai ser contada”,
disse num improviso, “porque vocês sabem que, muitas vezes, a história leva
anos, décadas e até séculos para a gente saber a verdade. Mas eu vou dizer uma
coisa como presidente da República deste país: tudo que aconteceu nesse país
foi uma mancomunação entre alguns juízes desse país, alguns procuradores desse
país, subordinados ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que queria,
nunca aceitaram o Brasil ter uma empresa como a Petrobras.”
Por essa versão oficializada
(“como presidente da República deste país”), o Ministério Público e o
Judiciário do Brasil entraram em conluio com o governo dos Estados Unidos e,
deliberadamente, sabotaram interesses nacionais com três centenas de inquéritos
sobre corrupção na Petrobras — contados apenas os autorizados pelo Supremo, nos
quais consta uma centena de acordos de delação julgados válidos pelo falecido
Teori Zavascki, por Edson Fachin e Cármen Lúcia, entre outros juízes.
Nada teria acontecido, segundo
Lula, além de conspiração imperialista contra o país e sabotagem contra a
Petrobras. Não apresentou prova, nem explicou algumas coisas. Por exemplo, por
que controladores e executivos da
Odebrecht confessaram pagamentos de cerca de 1 bilhão de dólares em subornos a
presidentes e funcionários em uma dúzia de países latino-americanos, com
movimentação comprovada no Uruguai, na
Argentina, nos Estados Unidos, na Suíça, em Andorra, Angola, Nigéria e
Moçambique.
Esse valor não inclui o dinheiro
(150 milhões de dólares) distribuído pelo Departamento de Operações
Estruturadas da Odebrecht a políticos e partidos em campanhas eleitorais no
Brasil e no exterior. Deixa de fora,
também, a multa (2,6 bilhões de dólares) aplicada à empresa nos Estados Unidos,
no Brasil e na Suíça. E, ainda, desconta o pagamento da Petrobras a
investidores (3 bilhões de dólares) ao admitir a corrupção.
Lula tem um país para governar com problemas
estruturais que, na essência, são os mesmos de vinte anos atrás quando chegou
ao Planalto. No entanto, segue aprisionado no espelho do passado. Falsificar a
história pode ser ideia sedutora para quem é viciado em si mesmo, mas contém
riscos para quem supõe poder controlar tudo na aldeia global. No caso
Petrobras, por exemplo, o negacionismo interessado de vítimas de forças
fantasmagóricas é incompatível com alegações de empresas como Odebrecht de que,
simplesmente, foram extorquidas por políticos e funcionários corruptos.
Leia mais em: https://veja.abril.com.br/coluna/jose-casado/forcas-ocultas/
Os textos dos colunistas não
refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 26 de
janeiro de 2024, edição nº 2877