2009/12/22

O juiz da eleição quer que o Brasil tenha menos partidos

O ministro Ricardo Lewandowski assumirá a presidência do Tribunal Superior Eleitoral em abril com uma obsessão em mente: ele quer diminuir os ânimos dos políticos nas eleições de 2010. Menos denúncias e mais ideias, é o seu sonho “como cidadão”.

O magistrado, que zelará pela escolha do presidente, de 27 governadores e de novos parlamentares, é um crítico do atual sistema político-eleitoral. De acordo com Lewandowski, há partidos demais - hoje, são 27, segundo o TSE - e programas que representem a sociedade, de menos. “Temos que ter um número menor de partidos, mas que sejam autênticos, programáticos, ideológicos”.

Para o ministro Ricardo Lewandowski, a primeira eleição presidencial desde a redemocratização sem Luiz Inácio Lula da Silva fará bem à campanha eleitoral. “Como o presidente Lula é um homem muito carismático, talvez seja uma campanha menos personalista, menos baseada em pessoas e mais baseadas em ideias”, diz, recostado na cadeira de couro preto, em sua sala, no quarto andar da mais alta corte do país.

Em entrevista ao iG, o ministro criticou o fato de a imprensa concentrar seu foco em escândalos, defendeu o financiamento misto de campanhas, pediu o fim da reeleição e cobrou do Congresso seu papel de fazer a reforma política. Sobrou até para a “juventude”. Se disse preocupado com o que considera “certa apatia” dos jovens em relação à política. “O desinteresse político não é provocado só pelos escândalos. Também tem ligação com a cultura consumista e hedonista da sociedade na qual vivemos hoje”.

Leia os principais trechos a seguir:

iG — Os escândalos políticos que se repetem insistentemente não revelam a necessidade de uma reforma política profunda? Por onde o senhor começaria a reforma?

Ricardo Lewandowski — Como cidadão, mais do que como juiz, considero a questão do financiamento de campanhas eleitorais um ponto relevante. Temos de abrir essa caixa preta. Eu não defendo o financiamento público exclusivo, porque não sei se seria justo o eleitor contribuinte pagar toda a conta. Talvez o ideal fosse o financiamento misto: basicamente público, com alguma contribuição privada. Mas essa contribuição privada bem identificada, bem controlada, com limites muito bem definidos.

iG — O que mais tem de mudar?

Lewandowski — Como ocorre em qualquer país democrático, é preciso ter um número menor de partidos políticos. Temos no Brasil um número muito grande de legendas, que nem sempre representam de modo autêntico um segmento da opinião pública. São meras siglas partidárias, que renascem no momento eleitoral, mas na entressafra ficam em estado de hibernação. Isso não é compatível com o sistema democrático. Temos que ter um número menor de partidos, mas que sejam autênticos, programáticos, ideológicos, que representem de fato uma fatia da opinião pública.

iG — Mas não era essa a ideia da cláusula de barreira, que o Supremo derrubou?

Lewandowski — O Supremo derrubou a cláusula de barreira porque os critérios não eram isonômicos, não eram constitucionalmente legítimos. Eram critérios discriminatórios. Mas o STF não é a melhor instituição para fazer a reforma política. E nem deve fazer essa reforma. Ele tem de interpretar a Constituição e as leis. A reforma tem de partir do Congresso Nacional, que tem todas as condições e a legitimidade para fazê-la. Afinal de contas, ele representa a cidadania. O Congresso poderia estabelecer critérios justos, isonômicos, para definir o número de partidos políticos.

iG — Qual o número ideal de partidos?

Lewandowski — Cerca de seis partidos, que representem o cenário político nacional. Um partido de centro, outro de centro-esquerda, um de centro-direita e mais dois outros partidos na extrema esquerda e na extrema direita, como ocorre em todos os países. Talvez, então, nós tenhamos um embate que esteja mais centrado em torno de ideias, de programas e menos em torno de questões pontuais.

iG — Por que o senhor acha que é tão difícil fazer a reforma, já que o senhor mesmo disse que o Congresso tem todas as condições?

Lewandowski — Porque existem interesses consolidados locais, regionais e nacionais que, de certa maneira, impedem que haja esse avanço, essa mudança na estrutura política brasileira. Mas há outras reformas que eu acho que poderiam ser levadas a cabo com bastante proveito.

iG — Por exemplo?

Lewandowski — É preciso reforçar a fidelidade partidária. Se nós tivermos menos partidos políticos e eles forem programáticos, ideológicos, a questão da fidelidade partidária seria automaticamente reforçada. Na verdade, a fidelidade quase que ficaria automática, porque seria impensável que alguém que milite em um partido de extrema esquerda, de repente migre para um de extrema direita. A própria nova natureza dos partidos políticos promoveria esta fidelização de seus integrantes.

iG — Nos Estados Unidos, um Democrata não vira Republicano...

Lewandowski — Exatamente. Há outros pontos. Tenho grande admiração pelo sistema distrital misto e pela votação em lista. Isso tudo daria mais transparência ao processo eleitoral. Também é preciso promover a democratização interna nos partidos políticos para evitar o caciquismo. Combater a lei de ferro dos partidos políticos à qual se referia o grande sociólogo Robert Michels. E este é um fenômeno sociológico que acontece não só nos partidos, mas também em outras instituições assemelhadas, como nos sindicatos, nos quais muitas vezes as lideranças não se renovam, são sempre as mesmas. Há reformas viáveis e o Brasil está maduro para fazê-las. Temos 20 anos de democracia nos quais as instituições resistiram a várias crises internas e externas, econômicas e políticas. Estamos maduros para absorver um aperfeiçoamento do modelo político.

iG — E o que falta, então, para que isso aconteça?

Lewandowski — Uma mudança cultural. Não só dos políticos, mas também da sociedade e da mídia. Se nós abrirmos hoje os jornais e as revistas, veremos que a mídia concentra-se mais em escândalos do que em propostas afirmativas. Dificilmente discutem-se os grandes temas nacionais. Um ou outro tema encontra espaço. Por exemplo, a questão do pré-sal, da divisão dos royalties. Mas propostas para o Brasil de curto, médio ou longo prazo, dificilmente são repercutidas. A mídia tem se concentrado em um jornalismo dito investigativo, que é válido e tem o seu papel, mas esquece dos grandes temas nacionais. Hoje os políticos são demonizados, justa ou injustamente. Mas temos grandes nomes no Congresso Nacional. Grandes lideranças que acabam ficando em segundo plano, sem se manifestar, porque o foco do debate não permite. Nós temos de começar a reunir as forças vivas da sociedade para pensar o novo modelo político. A academia tem papel importante neste domínio. Como presidente do TSE, um de meus projetos é dar bastante ênfase para a escola de Direito Eleitoral do tribunal. Quero buscar apoio da academia para refletir e debater o sistema político-eleitoral. Com isso, podemos motivar os políticos, a imprensa e a população em geral para pensar em um novo modelo, mais consentâneo com a modernidade do século XXI.

iG — Quando o Judiciário estabelece a fidelidade partidária ao julgar um processo ou decide quem deve tomar posse quando um candidato é cassado, não está fazendo, de certa forma, essa reforma política? Não está substituindo o Congresso?

Lewandowski — O Judiciário está resolvendo questões pontuais. Quando há omissão legislativa, uma lacuna da lei, e o Judiciário é provocado e tem de se manifestar, tem de dar uma solução para o caso concreto. As soluções nascem da interpretação da Constituição e das leis. Das leis eleitorais, no caso específico. Mas nossas soluções são efêmeras. São para o caso. Elas perduram por certo tempo por força da inércia. Por exemplo, no caso em que o Supremo decidiu que os servidores públicos têm direito de fazer greve. O que o STF disse, textualmente, foi que a decisão de aplicar ao serviço público as mesmas regras da iniciativa privada prevaleceria até que o Congresso legislasse sobre o tema.

iG — Faz quase dois anos, e nada de o Congresso legislar?

Lewandowski — Exatamente. Muitas vezes recebo políticos que reclamam que nós demos posse ao segundo colocado nas eleições. Então, eu respondo: “Os senhores têm de legislar, assumir o seu papel”. O TSE não quer dar posse ao segundo colocado. Mas a jurisprudência do tribunal se firmou no sentido de que, anulando-se os votos dados ao primeiro colocado, tirando-se o primeiro colocado do cenário político, o segundo colocado é o legitimado para assumir o posto. Certa ou errada, é uma interpretação pragmática. O Judiciário não quer o papel de legislar, mas tem de responder ao caso concreto. E essa resposta é efêmera e aguarda a solução do Congresso Nacional.

iG — O Congresso fez a minirreforma eleitoral...

Lewandowski — Por que não fez a maxi? E há um aspecto bastante negativo nesta reforma que é a impressão do comprovante de votação a partir de 2014. Há questionamentos graves que os técnicos estão apresentando, como a possibilidade de identificar o voto do eleitor, de quebrar o sigilo do voto. O segredo do voto é um dos dogmas mais sólidos e mais fundamentais da democracia representativa.

iG — O senhor citou que há uma demonização da classe política. O senhor não vê, também, uma desmotivação geral, principalmente dos jovens, em relação à política? O senhor acha isso perigoso para a democracia?

Lewandowski — A democracia é uma planta que tem de ser regada todos os dias. Eu vejo certa apatia da juventude, um desencanto com a política de forma geral. Mas isso não é só culpa dos políticos. É culpa também dessa sociedade consumista e hedonista na qual vivemos. Sou professor da USP há 30 anos e vejo que a juventude, que antes era mais aguerrida, mais engajada politicamente, pouco a pouco vai deixando esse ativismo político e vai se dedicando pragmaticamente ao aprofundamento em temas que são profissionalmente mais rentáveis. A ideia é passar rapidamente os cinco anos da faculdade de Direito, obter logo o diploma, fazer um concurso público ou se encaixar na vida profissional privada e ponto. É isso que hoje os motiva. Mas isso me parece parte da cultura que o mundo todo vive hoje. Cultura que já traz graves prejuízos ao meio ambiente, porque nós não abrimos mão do consumo supérfluo. O desinteresse político tem ligação com essa cultura, não apenas com os escândalos.

iG — O ministro Gilmar Mendes, recentemente, criticou eventos políticos do governo. Como separar o que é ato de governo, administrativo, de ato de campanha? As regras deveriam ser mais claras?

Lewandowski — Não existem critérios muito rigorosos e há uma realidade da qual nós não podemos nos afastar: a vida administrativa continua para os governantes que são potenciais candidatos. É muito difícil separar uma coisa de outra. Nós caímos em um subjetivismo muito grande. É possível que o Congresso regulamente isso com mais rigor, mas por enquanto há certo subjetivismo na avaliação. Dependendo do partido político, da coloração partidária, alguém acha que um evento foi exagerado no sentido da promoção de um candidato. Já aquele que está promovendo o evento acha que não. No meio disso está o juiz, que não pode permitir que predomine o subjetivismo. Enquanto não tivermos regras mais rigorosas, temos de aplicar as que nós temos. Na verdade, as regras mais incisivas só começam a valer a partir do momento em que se desencadeia a eleição.

iG — Esse período é de três meses antes do dia da votação. O senhor acha que esse período deveria ser maior, principalmente com a possibilidade de reeleição sem que o candidato tenha de se afastar do cargo?

Lewandowski — Eu tenho uma avaliação muito negativa da reeleição. Eu preferia que o mandato fosse mais amplo para que o governante pudesse realizar todas as suas propostas dentro de um tempo razoável, sem a possibilidade de reeleição.

iG — Mais amplo quanto? Seis anos?

Lewandowski — Um mandato de cinco a seis anos é razoável para que se façam realizações, que se cumpram programas. A reeleição tem trazido mais ônus do que bônus para a democracia brasileira. Quem está na máquina tem a tentação de usá-la em seu benefício, em benefício daquele que ele está apoiando. A reeleição é negativa por esse aspecto.

iG — O senhor viu algum abuso nos eventos recentes?

Lewandowski — Houve representações julgadas pelo TSE. O plenário do tribunal concluiu — e eu participei dos julgamentos — que as representações não provaram que houve abuso.

iG — A falta de regras claras é ruim porque, com a mudança da composição do tribunal, o que não foi considerado abuso hoje, pode ser considerado amanhã...

Lewandowski — O TSE tem a característica da renovação de seus membros. Os mandatos são de dois anos, prorrogáveis por mais dois. Isso é positivo para que não se cristalize uma opinião política dentro do TSE. Vamos supor que o tribunal fosse formado por juízes conservadores ou extremamente progressistas, ou vinculados ideologicamente a uma determinada corrente política. Se os mandatos fossem longos isso se perpetuaria. O TSE é diferente do Supremo, onde o mandato é mais longo exatamente porque o que se deseja é que a jurisprudência se cristalize, se consolide, para trazer segurança constitucional à sociedade. Mas no tribunal eleitoral não se pode consolidar um pensamento político. Lá, os juízes têm que refletir o sentimento predominante na sociedade. Se no futuro a sociedade reagir de forma mais intensa a esse tipo de evento que alguns consideram campanha antecipada, a reação certamente se refletirá nos juízes do tribunal. Hoje, a sociedade recebe isso com certa tranqüilidade, passividade. Não se vê uma reação popular intensa contrária. Há vozes discordantes, há críticas, mas o próprio Congresso Nacional, que seria o maior interessado em regular o assunto, não está regulando. Deveria regular. Mas ele também reflete um sentimento popular de certa leniência. Talvez isso se coloque dentro dessa apatia geral que estamos vivendo.

iG — Qual a expectativa do senhor em relação à campanha eleitoral de 2010?

Lewandowski — A de que nós vamos ter uma campanha de alto nível. Uma campanha em que se discutam ideias, programas, realizações e não baseada em ataques pessoais, denúncias ou dossiês. Eu tenho muita esperança de que o Brasil tenha amadurecido e de que nós tenhamos uma campanha de país politicamente desenvolvido.

iG — Como o senhor vê a primeira campanha depois da redemocratização sem o presidente Lula na disputa?

Lewandowski — Como o presidente Lula é um homem muito carismático, talvez seja uma campanha menos personalista, menos baseada em pessoas e mais baseadas em ideias.

iG — Menos apaixonada?

Lewandowski — Talvez menos apaixonada e mais racional. Quando nós temos líderes muito carismáticos, como aconteceu com o Collor em 1989, e com o próprio presidente Lula depois, as paixões se exacerbam, os ânimos ficam à flor da pele e, muitas vezes, as ideias ficam em segundo plano. Talvez, quando concorrem pessoas menos carismáticas, pode ser que aflorem mais ideias, mais planos, mais programas e que o debate se coloque em um nível mais objetivo. O que é melhor do ponto de vista do interesse nacional.

Matheus Leitão e Rodrigo Haidar, iG Brasília

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