2015/01/24

Dono de uma prosa singular, José Cândido de Carvalho começa a ter sua obra reeditada

Com imaginação e pesquisa, autor conseguiu reunir seres fantásticos, personagens curiosos, politicagens e desmandos

RIO - Quando a voz de trovão de Ponciano de Azeredo Furtado ressoa nos ermos faz tremer o chão do mundo encantatório ao qual pertence o famoso e hiperbólico personagem criado por José Cândido de Carvalho: sereias, lobisomens e ururaus ficam ouriçados e aparecem novamente para encenar as aventuras estapafúrdias da obra mais festejada da carreira do autor. Publicado em 1964, “O coronel e o lobisomem” ganhou no final do ano passado nova edição pela Companhia das Letras, coincidindo com a comemoração do centenário do seu autor, nascido em 1914. O livro marca o início da reedição, pela Companhia, da obra de José Cândido, até então abrigada na José Olympio. O escritor, que morreu em 1989, também foi homenageado numa caprichada edição da Confraria dos Bibliófilos, reunindo diversos e divertidos microcontos ilustrados por Claudius.

Ponciano é tão real que parece gente de verdade, é quase tridimensional. Como todo personagem forte e talhado à feição de pessoa, permanece necessário e atual. Gigante de dois metros, generoso e poético, rude e truculento ao mesmo tempo, imaginação delirante, linguarudo, obcecado por um “rabo de saia”, o coronel é uma das figuras mais marcantes da nossa ficção. Espécie de montagem fantástica de várias referências que vão do Quixote ao Barão de Münchausen, mistura ainda as “gentes” que o autor colecionou, especialmente nas viagens de trem, no trajeto de Campos de Goytacazes, onde nasceu, para a vizinha Santo Amaro, quando era bem jovem e ainda não tinha se tornado escritor.

Um desses viajantes chamou-lhe especial atenção. Entrou no trem com um passarinho dentro de uma gaiola e colocou o bichinho em uma poltrona a fim de que este pudesse viajar com conforto. Se alguém ameaçasse tomar o lugar onde estava o protegido, o homem reagia com valentia inesperada: “Ninguém bota o rabo neste banco!”, berrava. Quando Zé Cândido entrou para o serviço de “escurecer laudas de papel”, como ele mesmo dizia, a visão repentina daquele homem do trem, raivoso, mas terno com o pequeno animal foi embaralhada com outras tantas lembranças, leituras, conversas, crendices e observações dos tipos populares que encontrava em sua terra; as tintas foram exageradas, para que Ponciano fosse criado não só em sua exuberante bizarrice, como na dimensão lírica de apreço aos “inhos” de sua vida, como o galinho ruivo, com quem trava uma amizade que revela a inocência infantil por trás da fama de matador de feras.

Herdeiro da propriedade do avô, poderoso em suas terras, o coronel Ponciano jura ter enfrentado animais perigosos e até ururau, o jacaré descomunal que aparece pelas bandas do sem-fim, e também onças pintadas e lobisomens; a luta com o sobrenatural rende um dos capítulos mais geniais da literatura brasileira. O coronel conta sua história entre a confissão e a autoadmiração, e o relato oscila entre a primeira e a terceira pessoa. Vive segundo suas próprias leis, e é assombrado por delírios. Até mesmo as invenções do amor o perseguem: a paixão por Esmeraldina, mulher casada e impossível, revela o quão quixotesca e frágil é a sua decantada valentia. Ao longo da obra, o personagem caminha fatidicamente para a falência e para a loucura ao trocar o campo pela cidade. Se de início prospera nos negócios, depois esbanja dinheiro e se perde por completo.

ESPERA ATÉ O SUCESSO

Curioso é que os originais de “O coronel e o lobisomem” não nasceram com facilidade para a glória. Amargaram uma dura espera antes da publicação. Antes de ser a obra-prima que todos conhecem, o livro era uma reunião de crônicas. Seria impresso nas oficinas da revista “O Cruzeiro” dessa forma. Mas a gráfica estava sobrecarregada de trabalho, e o livro dormiu na gaveta do então diretor Herberto Sales meses a fio. Um dia, Zé Cândido entrou na sala da direção e pediu os textos de volta. Tinha decidido transformar as crônicas em um romance. Enfurnou-se com obsessão na tarefa e não mostrou os rascunhos para ninguém até chegar ao ponto final.

Com o título de uma das crônicas, o romance foi publicado nas oficinas da revista, em 1964, com uma tiragem de três mil exemplares que logo se esgotou. O sucesso repentino não foi surpresa para Herberto Sales; assim que chegou à última página de “O coronel e o lobisomem”, teve a certeza de que o amigo acabara de escrever uma obra-prima. Ficou feliz que os textos esparsos tivessem sobrevivido à longa espera com fôlego para serem transformados em um trabalho genial. A segunda edição teve 10 mil exemplares. A terceira saiu pela Editora José Olympio recheada de elogios, como os de Rachel de Queiroz. José Cândido de Carvalho ganhou prêmios, fama, traduções, e chegou à Academia Brasileira de Letras. Proeza que seu primeiro romance, “Olha para o céu, Frederico”, de 1939, nem de longe alcançou.

O que de tão extraordinário há em “O coronel e o lobisomem” para balançar os confins dos ermos literários? Um dos aspectos mais fortes do texto é, sem dúvida, a linguagem de Ponciano — um dicionário particular criado exclusivamente para ele. Não apenas os neologismos, mas a forma como Zé Cândido juntava palavras, num confronto inusitado de vocábulos, faz com que o linguajar da prosa — e o ritmo — seja, de fato, extraordinário. Expressões como “vento linguarudo”, “empanzinado de resmungos e impertinências”, “tempo nanico”, “destroncar a língua” espalham-se pela obra. Frases repentinas, carregadas de lirismo intenso e declinado ao jeito Ponciano de ser surpreendem a narrativa: “Por desgraça, um sujo de nuvem emporcalhou o luar em sua nascença”.

Ou, então, em um dos desabafos finais do coronel: “Sou de coração muito humanal e não tenho olho só para benfeitorias de pasto e curral. Sei apreciar uma boniteza de planta, uma asinha de borboleta e ninguém, nestes anos todos de minha vida, fez justiça contra os passarinhos do meu céu e os bichos do meu mato”.

Em uma passagem crucial, como a do confronto com o lobisomem, lê-se: “Era trabalho de gelar qualquer cristão que não levasse o nome de Ponciano de Azeredo Furtado. Dos olhos do lobisomem pingava labareda, em risco de contaminar de fogo o verdal adjacente. Tanta chispa largava o penitente que um caçador de paca, estando em distância de bom respeito, cuidou que o mato estivesse ardendo. Já nessa altura eu tinha pegado a segurança de uma figueira e lá de cima, no galho mais firme, aguardava a deliberação do lobisomem”.

Além do aspecto dinâmico da linguagem, a atualidade de “O coronel e o lobisomem” sustenta-se na força misteriosa e inesgotável do mundo ao redor do qual gira o personagem central. Um mundo em que onças e lobisomens convivem na mesma floresta e nos mesmos campos infestados de politicagens, desmandos e absurdos tão incríveis que seriam pura ficção não fossem reais. Se a linguagem de Ponciano faz o chão tremer como um trovão balança o céu, a história que ele encena é igualmente perturbadora e atual.

‘TEORIA DO REUMATISMO’

O fino senso de humor que está em tudo o que o autor escreveu não poderia deixar de fazer parte de sua maneira de ver e pensar o mundo. Ele tinha ideias e comentários ótimos em relação a tudo o que sua capacidade de observação capturava. Criava teorias igualmente hilárias. Uma delas era a do reumatismo. Dizia que quando uma pessoa tem alguma doença, como um reumatismo, por exemplo, a origem do mal não está exatamente na pessoa: vem de uma avó ou tia ou bisavô que já sofreu do mesmo problema. Então, se as coisas são transmitidas pelo sangue, a gente não é uma única pessoa, mas várias. Às vezes, dizia ainda, quando se entra em uma sala, tem-se a sensação de termos estado ali. Foi um parente que já esteve no lugar. De onde se conclui que todos somos uma multidão de antepassados.

Ele colocou a teoria do reumatismo em prática na ficção, transformando-a em uma espécie de composição polifônica ao criar “O Rei Baltazar”, o terceiro romance inacabado à época de sua morte, e ainda inédito. A história, que Laura e Ricardo Carvalho, filhos do escritor, ainda pretendem publicar, depois de um cuidadoso trabalho de edição, fala de Diogo Maldonado de Sá, escrivão do interior que enriquece de repente e passa a viver a euforia da riqueza. Mas perde tudo e acaba voltando à vidinha de antes, novamente mergulhando em seus “alfarrábios infindáveis”. O mais interessante da história é a composição do protagonista: ele sofre influências — reumáticas? — dos parentes Baltazar e Simão, seus primos. Os personagens falam ao mesmo tempo, são vários em um só. Agem quase simultaneamente.

“O Rei Baltazar”, em que pese alguma ou outra semelhança com “O coronel e o lobisomem”, como a estrutura episódica, é uma obra muito diferente. Esta era uma das maiores preocupações de José Cândido de Carvalho, a de criar um romance que não repisasse os campos de Ponciano. Até onde se pode compreender o que seu inédito quis dizer, o autor conseguiu o intento. Ambientando em Campos dos Goytacazes — para onde os outros do coração do autor estiveram sempre voltados —, o livro remonta a uma época em que quase não havia carros. O protagonista é um dos primeiros a chegar motorizado à cidade. Quase atropela um cabrito.

PREFERÊNCIA PELO CONTO

Um trecho bastante lírico: “Quando chega o tempo de flor, a pradaria solta todos os seus escondidos. Brota tudo. Até o carrapicho mais despreparado muda de casa. E dos alagados, das águas dormidas, sai coisa do arco da velha. A passarada fica de velas soltas, resmas e resmas de quero-queros de asas soltas. Uma noite, estando na cama, ouvi o pio dos marrecos. Fui olhar o céu, que um luar descamoado polia um sem-fim de asas, todas em formação militar voltam à pradaria. De manhã, no lavar dos olhos, vi aquela grandeza de nunca vista. Deus, durante a noite, tinha tirado o lençol que encobria os pastos para deixar tudo livre, flor por todo canto, pio de pássaro até no forro da casa”.

O primeiro livro, “Olha para o céu, Frederico”, foi lançado em 1939, enquanto “O coronel e o lobisomem” só apareceu 25 anos depois. “O Rei Baltazar” maturou nas mãos de Zé Cândido não se sabe por quanto tempo, e também não se sabe ao certo por mais quanto tempo seria elaborado até que fosse considerado pronto. Jornalista, além de ter assumido vários cargos públicos, como a direção da Funarte, ele dizia que escrever era difícil, e que a ficção era “mato brabo”, cheio de onça de surucucus, e que escrever romances era uma danação muito grande — doía.

Optava quase sempre por escrever textos menores — os famosos contos, que compuseram volumes imperdíveis como “Por que Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon”. Alardeava preguiça de escrever muito. Talvez fosse até verdade, mas é preciso acrescentar que um motivo maior seria a obsessão por trabalhar com precisão e pesquisa. Se Guimarães Rosa tinha sua cadernetinha em punho para suas preciosas anotações do caminho, Cândido preferia papéis dispersos nos quais anotava seus passeios pelas curiosidades, como listas de animais, tipos de plantas, nomes de ruas que encontrava no percurso da criação. Para fazer “O Rei Baltazar”, por exemplo, pesquisou intensamente a linguagem dos escrivães. A linguagem, esta sim, era seu “mato brabo”, que ele queria domar a seu modo.

por

Claudia Nina é jornalista e escritora, autora de “Paisagem de porcelana” (romance, Rocco) e “ABC de José Cândido de Carvalho” (José Olympio), entre outros livros

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