Passarinho para voar
Entrou na garagem de conserto de bicicletas
só para um ajuste simples, calibrar, esses pequenos cuidados antes de um
passeio. Enquanto aguardava, percorreu a pequena oficina com os olhos e se
deteve numa gaiola grande, de madeira e arame escurecido, cuidadosamente
instalada sobre um tablado forrado com um cobertor, na parte dos fundos.
Resolveu se aproximar, e passou a observar com atenção um pequeno pássaro, em
tons diferentes de cinza e branco.
Os trejeitos da ave, frágil, eram
quase mecânicos – pulava insistentemente entre os dois degraus instalados
dentro da gaiola, e agarrava-se às grades, para então fazer e refazer o
trajeto, numa repetição sem fim do movimento. Não aparentava tristeza,
contentamento, medo, nada.
Não demorou muito para que o dono
da oficina, que não conhecia, perguntasse:
- Gosta de passarinhos? Esse aí é
um papa capim coleira. Canta que é uma beleza.
- Gosto muito -disse- sem pensar
muito. Mas gosto dos passarinhos soltos.
O homem chegou a parar o que
fazia, meio surpreso, meio incrédulo, meio aborrecido até.
- Ah, mas para quem gosta, a
gente cria com carinho, e se esse for solto, acaba morrendo. Está acostumado
com o alpiste e o jiló dado na mão, na gaiola. Não sobrevive aí fora não. Pode
deixar a portinha aberta que ele acaba não saindo. Não é um passarinho para
voar.
De qualquer forma, a tal portinha
da gaiola era mantida fechada. Quem sabe o passarinho, meio sem querer, ou sem
saber o que fazia, resolve sair, experimentar voar, para morrer desnutrido...
- Não é passarinho para voar? É só
para cantar? – questionou.
- É de criação. Passarinho de “canti”.
Viu que não poderia haver diálogo
ali. Como impedir um ser de fazer o melhor de si, fazer o que foi feito para
fazer? Só pensou que aprisionar um passarinho daqueles era a única forma de
alguém trazer para perto de sim a arte de voar, a eterna vantagem natural sobre
o homem, mas, ironicamente, destruindo-a a golpes de inveja e vingança. Mozart
sem compor; Picasso sem pintar; Einstein sem raciocinar.
Terminado o serviço, pagou ao
dono da oficina, agradeceu e se despediu apenas com um bom dia. Deixou a garagem
e viu que o homem continuava nos seus afazeres, do balcão para a área onde
ficavam as bicicletas, dali para o armário de ferramentas e para a máquina de
ar, e vice e versa, e vice e versa. Metódico cotidiano.
Saiu pedalando, vento no rosto,
na certeza absoluta de que o papa capim coleira aceitaria correr qualquer risco
para cumprir seu destino desde o ninho.
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