O relato da jornalista Míriam Leitão sobre os impropérios a
que foi submetida num voo entre Brasília e Rio de Janeiro no último dia 3 de
junho revela as dificuldades que uma parcela significativa do Brasil ainda tem
para entender e respeitar a alma da democracia. Isso fica claro tanto no
episódio quanto nos desdobramentos que gerou.
À primeira vista, a agressão em si poderia ser classificada
apenas como uma molecagem de militantes malcriados, incapazes de respeitar o
espaço alheio. Encontram alguém de quem não gostam, reagem como torcedores num
jogo de futebol diante de um craque do time adversário, soltam slogans e
palavras de ordem para tirá-lo do sério.
Se ficaram à vontade para constranger Míriam, é porque não
se sentiram constrangidos. Comandante e tripulação, segundo o relato dela,
ficaram apáticos. Nem um policial chamado a bordo bastou para calá-los. As
dificuldades práticas suscitadas pela situação não podem servir de pretexto
para eximir a companhia aérea de sua parcela de responsabilidade. Falharam os
procedimentos destinados a preservar a paz em qualquer voo.
Ainda que lamentáveis, o mau comportamento de passageiros e
a omissão de companhias aéreas são frequentes e não distinguem esse incidente
de tantos outros. O que distingue o ataque a Míriam é ter se voltado contra uma
profissional da imprensa. Para aqueles que gritavam, ela era símbolo da empresa
para que trabalha – e também do jornalismo. O time adversário, na visão
distorcida dos militantes, é a imprensa livre, espaço de debates e civilização
em toda democracia.
É por isso que as reações ao episódio se revelaram ainda
mais preocupantes. O PT, partido dos militantes, emitiu uma nota condenando a
atitude deles. Mas não se limitou a isso. Repetindo uma fabulação frequente na
mitologia petista, em especial nos discursos do ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, atribui ao grupo de comunicação para o qual Míriam trabalha (o Grupo
Globo) a “responsabilidade pelo clima de radicalização e até de ódio por que
passa o Brasil”.
Não há, da parte do PT, nenhum tipo de elemento que
justifique essa acusação. Se o Brasil vive um clima acirrado de polarização,
boa parte da responsabilidade cabe, ao contrário, ao próprio discurso adotado
em campanhas do PT (como expliquei num post de minha série publicada há dois
anos sobre o assunto).
A retórica maniqueísta do “nós” contra “eles”, “pobres”
contra “ricos”, “povo” contra “elite” sustenta até hoje a fabulação petista.
Tal lógica distorcida, desmentida por uma realidade bem mais complexa, alinha o
“partido” aos “bonzinhos” – e põe a “mídia” no campo dos “malvados”. Trata-se de uma inversão de
valores, reproduzida à exaustão pela militância petista nas redes sociais,
ignorante sobre o funcionamento do jornalismo e sobre quão essencial ele é para
a saúde da democracia.
Democracia é o regime político em que divergências são
respeitadas e resolvidas pelo diálogo. Na democracia, o espaço de diálogo é a
imprensa profissional. Portanto, só quem não acredita na democracia ataca a
imprensa aos gritos. Não se trata de atitude exclusiva de petistas. Está
presente na Venezuela de Nicolás Maduro, nos Estados Unidos de Donald Trump, na
Rússia de Vladimir Putin e em tantos outros países.
Até mais que o ataque a Míriam, preocupa a tentativa de
diminuí-lo e de desmerecer o relato dela, promovida por blogs e militantes nas
redes sociais. Testemunhas questionaram sua versão e – à moda daqueles
antissemitas que se dizem “apenas antissionistas” –
afirmaram que os militantes não atacaram Míriam, mas “só a Globo”.
Os vitupérios vieram não apenas de petistas. Houve até quem
cometesse o absurdo de considerar a vítima culpada pela agressão e enxovalhasse
a própria Míriam por ter sido uma militante de esquerda que combateu a ditadura
militar.
Num momento de crise política aguda como a que o Brasil
atravessa, tais reações revelam que não estamos livres das tentações
autoritárias. É nessas horas que o trabalho da imprensa profissional – e de
profissionais da imprensa como Míriam – se torna mais necessário que nunca.
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