2008/05/11

Poema

ESPERA

Durma filha minha, durma,
teu descanso é meu remanso...
Cubro-te, apago as luzes e vejo
como sempre
a mesa posta para uma noite a mais,
comum.
São nove horas e teu pai que de longe
ainda não chega!
Tantas coisas fiz pelo tempo longo,
que todos os dias se arrasta,
do sopro da brisa da manhã ao hálito da noite,
mas não me canso, ainda.
Os chinelos negros ao lado da nossa cama
de casal,
jornal sobre a cômoda ao lado do sofá
predileto, na sala, o abajur ligado.
A garrafa térmica de café fresco
ao lado dos biscoitos de polvilho
na cozinha,
como sempre.
Não diga rotina filha minha,
pois do relógio ouço a música
de nossas almas, dos fatos da família
que traçados, ponto a ponto, bordaram
a moldura de nós mesmas.
Como voa a vida...
Me lembro apenas de enfeitar
em menina os cabelos com flores,
do riso claro e franco de minha mãe,
e do teu avô,
serena preocupação entre
trabalho e família a passos curtos.
De noite contava sombras e semanas
à meia luz do lampião, desenhando então
meu homem,
ajudando como pude a rabiscar
o vestido branco e pérola
plissado em mangas longas.
Em agora posso ver
de tudo um pouco do que fui e sou,
de todo novelo que me deram
qual sinal, cangalha e ferro.
Destino meu, filha, feito
joão-de-barro, feito
toque perfeito do imperfeito,
feito caminho mal feito.

II

Só te digo do que me lembro, filha.
Sei que agora é tarde,
pois ouço a noite em sintonia
com o que parece espreitar cada minuto.
A copa está varrida, a tv já desligada,
como sempre.
As mariposas brincam e escorrem
pelos vidros da janela,
como poucas vezes vi.
Parece que vai chover.
A luz que vem de fora não vem da lua,
tampouco a brisa anuncia algo melhor.
De novo filha minha,
só as novas cartas trazidas hoje cedo,
de seus tios,
aqueles que casaram e viajaram.
Guardei-as numa caixa branca
na primeira gaveta
da cristaleira azul-marinho
do corredor maior, bem junto
da receita de bolo de milho.
Já te disse que aprendi cedo a cozinhar,
boas lembranças...
Teu pai que ainda não chega,
a cada passo na calçada, a cada folha que se arrasta,
a cada vira lata que se coça e corre
no escuro.
Esperar, filha, mas
o que dizer quando
o que se fita no espelho
o que se diz não é você?
O que se olha não demora a dizer
quem é você ...
Meus cabelos já mudaram tantas vezes,
minhas roupas vestiram corpos tantos,
mais vistosos,­
minhas mãos despiram as luvas de pelica
e hoje nem meu batom me beija mais.
Já te disse,
não sei como mas guardei em silêncio
o silêncio do vestido bem comprado,
branqueado até então,
guardei flores, fantasia,
guardei flancos em demasia
sem que vertesse lágrima qualquer,
para qualquer rio do mundo.

III

Foi aos poucos,
na vertente das minhas esquinas
que senti a triste sina
de ver então
tua cama vazia, filha minha.
Sempre.
O lençol bem arrumado,
travesseiro perfumado em tons de rosa,
tapete, cortinas, tudo em seu lugar,
sem você.
Também aos poucos filha minha
percebi teu pai revolto,
vendaval numa tarde que se perdeu
no baú da tenra idade,
vontade que esmoreceu
assim, feito felicidade.
De todas as vontades, maior
vontade aconteceu,
de todos os meus amores
só aqueles sem temores,
só aqueles cujas dores
encardidas
pude leve desfrutar.
Frutas maduras, no cesto
sobre a pia da cozinha, cuja porta
apontava para o quintal,
natureza que me lembro,
de Cézanne,
de Velázquez.
Tudo sem sentido
agora, em tanta espera,
faz sentido afinal,
qual volta de onde fui
sem mesmo nunca ter partido.
Acho que vou me deitar.
Mas deixo a porta só no trinco,
sem problemas,
as bambinelas da janela principal
abertas,
que espero o vento da madrugada,
fresca.

Luciano Aquino Azevedo

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